sexta-feira, 13 de março de 2009

Protecção de Menores


Original aqui
http://dossiers.publico.clix.pt/imagens.aspx/120697?tp=UH&db=IMAGENS&w=320

Comissões sem meios para garantir protecção de menores em risco Protecção de crianças na "corda bamba"

Menos de um quarto das 239 comissões do país podem gabar-se de atender em permanência, tal como estipulado legalmente

Por Ana Cristina Pereira, Andreia Sanches
07.11.2004

De repente, a tortuosa morte de uma bebé de Ermesinde lançou a suspeita sobre a eficácia das Comissões de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ). Onze meses depois, o estranho desaparecimento de uma menina de Portimão voltou a pôr a tónica na fragilidade daquelas estruturas. Entre um e outro episódio, nada mudara. Na maior parte dos distritos, as CPCJ não têm técnicos disponíveis o tempo suficiente para acompanhar os menores em risco, admite o relatório de avaliação da actividade das CPCJ de 2003.

Histórias como as de Catarina e Joana deixam os membros das comissões com um trago amargo na boca. “Há muitas Joanas neste país”, desabafa Cristina Cunha, psicóloga da CPCJ de Coimbra. “E responsabilizar os técnicos [das comissões] pelos casos mal acompanhados não é justo, porque o que se lhes pede é impossível de realizar”, acrescenta Fátima Mota, presidente da mesma comissão.
No ano passado, as CPCJ estavam a “acompanhar” cerca de 22 mil crianças e jovens – à volta de 1,08 por cento da população com menos de 19 anos. Como? “Na corda bamba”, diz João Magalhães, membro da CPCJ de Viseu.

Desde logo, o grosso das comissões tem, como refere Ana Nunes de Almeida, socióloga do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, “horário de funcionalismo público”. Cerca de 54 por cento funcionam durante os dias úteis. E 13,3 por cento apenas alguns dias por semana.
Menos de um quarto das 239 comissões do país podem gabar-se de “atender” em permanência, tal como estipulado legalmente. Quer isto dizer que quando estão de portas fechadas dispõem de um telemóvel, de “voice mail” ou de encaminhamento de chamadas para entidades de primeira linha.
Ana Nunes de Almeida, coautora do estudo “Famílias e Maus tratos às crianças em Portugal” insiste: “Isto tinha de ser pensado como uma urgência hospitalar”. Afinal, o perigo não tem hora.
Na opinião de Fátima Mota, o modelo em vigor “é bom para um país rico, não funciona num país como o nosso”. As CPCJ estão muito dependentes “da boa vontade” das instituições que as integram. E isso deixaas “muito vulneráveis”.

A dependência é, sobretudo, municipal. Perto de 56 por cento partilham um espaço com outros serviços, quase sempre autárquicos. Mais de três quintos dividem o telefone, o fax, o telemóvel. O atendimento, dizem diversas fontes contactadas pelo PÚBLICO, é então feito com sucessivas interrupções, sem privacidade, o que dificulta diagnósticos. Duas CPCJ nem têm sítio fixo.

Coimbra deixou de receber casos
Mas para a maior parte das CPCJ não é aí que está o problema – a esmagadora maioria entende até que tem o material de que necessita. É a disponibilidade dos técnicos que nelas trabalham que é considerada, por mais de metade das comissões, “um dos principais constrangimentos” à sua actuação.
A maior parte das entidades representadas (da Segurança Social às polícias, passando pelos centros de saúde) cedem os seus funcionários apenas uma manhã, uma tarde ou o correspondente a um dia de trabalho. Algumas CPCJ vivem sem um único elemento a tempo inteiro. “Na maioria dos distritos, contam com uma disponibilidade de técnicos inferior ao estipulado”, admite o relatório da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco.

Quantos, como João Magalhães, representante do Instituto Português da Juventude numa comissão restrita e em cinco alargadas do distrito de Viseu, podem gabar-se de poder largar tudo para ver um menor em perigo?
Isabel Sani, por exemplo, dá aulas na Universidade Fernando Pessoa, consultas na Universidade do Minho e está na CPCJ de Braga há sete anos quase em regime de voluntariado: “Como é que posso dar prioridade à comissão?”

Jorge Magalhães fala em “espírito de missão”. “As comissões não funcionavam se não fosse a dedicação de quem lá está, mas todo o voluntarismo tem limites”, diz o procurador José Ponte, que lançou a CPCJ de Matosinhos. A mesma ideia é repetida inúmeras vezes. “As coisas estão melhor do que estavam no início”, quando as comissões arrancaram, mas o volume de processos é muito grande, “as estruturas não disponibilizam os técnicos o tempo necessário”, sustenta Margarida Cruz, da CPCJ de Lisboa Oriental.
A falta de capacidade de resposta levou a CPCJ de Coimbra a tomar uma atitude. Desde 12 de Junho deixou de receber processos, reencaminha tudo para tribunal. Já tinha 233 casos. “Só se fôssemos irresponsáveis é que recebíamos mais”, afirma Fátima Mota.

De resto, o relatório mostra que a maioria das CPCJ instaura ou reabre mais processos do que celebra acordos de promoção e protecção, o que denotará, em muitos casos, “dificuldades ao nível da intervenção”.
“A grande questão tem a ver com o acompanhamento das famílias. É aí que as coisas falham”, sustenta, por seu lado, Marília Fragoeiro, responsável pela Direcção de Educação, Formação e Acção Social da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Quando se acciona um programa de apoio, “não basta ir a casa ver se a criança está bem ou mal”, acrescenta. É preciso trabalhar com os agregados.
“Faltam técnicos no terreno a sustentar as nossas deliberações”, acrescenta Jorge Souto, presidente da CPCJ de Setúbal.

Ana Nunes de Almeida aponta outra mácula: “O mundo das comissões faz-se de técnicos que não estão, muitas vezes, profissionalmente preparados para lidar com estas situações”. E “a carolice só serve quando há estruturas profissionais oleadas e muito qualificadas. Coisa que não existe”, defende.
Razões de sobra para o procurador Nunes da Silva, interlocutor do Ministério Público nas CPCJ de Setúbal e Palmela, lançar uma pergunta: “Será que este sistema [em vigor desde 2001] consegue resolver os problemas? Até agora não conseguiu, porque não houve os meios necessários”, responde. Nada de novo. O anterior modelo também não foi esgotado, salienta José Ponte.

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